Total de visualizações de página

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

CRÍTICAS

1 - Das cidades feitas cidade A poesia do novo livro de Rogério Batalha transborda das páginas. Abarca a cidade, faz dela seu visgo, sua intempérie de palavras. A ousadia do poeta cria, na secura com que são escritos os poemas, a imagem do gozo pútrido e libidinoso que enforma de delícias os limites da própria cidade. Anda por ela – aqui e ali – na tragicidade com que o périplo peripatético é construído: uma nova lição das coisas, da cidade, vê-se surgir. A cidade não mais bipartida, mas fundida, amalgamada. Dubiedade do mesmo: os espaços são ocupados pelas delícias, os espaços são ocupados pela derrisão de quem se sabe membro de uma sociedade em ruínas, e, entretanto, aptos, ambos, para os prazeres que se escondem entre os escombros de si mesmos. Aqui e ali são o buraco negro, a informação dúbia de onde se extraem a merda e as delícias que a merda possibilita. Não há, na poesia de Batalha, como postula certa sociologia, duas cidades – uma apta para as delícias; outra, para os trabalhos diuturnos da escravidão, do abuso a que seriam submetidos parte de seus habitantes. Há uma e única cidade – abismada – a conviver com os fantasmas de seu passado, com sua vocação para o prazer. O poeta delicia-se – como comprovam seus versos – com os umbigos, as delícias do corpo solto, mas, nesse deliciar-se, em que é também crítico dos aspectos sujos de seus botecos, de suas latrinas, alerta para as possibilidades de ruína dos ambientes burgueses e bem cheirosos da cidade ajardinada, maravilhada de si mesma. O Rio “atado ao dissolver dos sonhos e à coagulação do concreto tem como sina sua lábia intestina já que ilha nenhuma havia (para ancorar) senão o abrupto do seu olhar.”. A linguagem da lábia intestina que o poema traduz não só nos devolve à cidade como com ela faz a contraluz da palavra: nada determina o fim do périplo trágico: Volta-se ou se sai de casa – após fazer o leitor andar a e pela cidade – com o único sentimento de que a busca da linguaimagem – poética ou não – é um porto sem ilhas, uma escala impossível, um não metódico, para quem saiba que farejar delícias é naufragar na sagacidade. Se a volta de Ulisses a Ítaca pressupõe o reconhecimento de si mesmo, nas ilhas-não de Rogério Batalha nenhum reconhecimento é possível, o destino do indivíduo que perambula pelas ruas, bares e corpos é saber-se cada vez mais desconhecido e estranho. Não há oráculo que desvele os destinos dos homens sem identidade, por isso, os habitantes desta cidade fundida podem abismar-se das belezas que as fezes ou as nuvens formulam na sua capacidade de criar instantâneos que se mostram e escondem a cada palavra, a cada olhar, quando o poeta se abeira da fugacidade física das coisas que nos habitam e que habitamos, sem que neste habitar exista a possibilidade de dissociação. -

Oswaldo Martins

-----------------------------------

2 - Rogério Batalha é poeta. Desconhecido, vem editando seus livros quase que marginalmente. Madureira, Cascadura e Penha (mas não só) são os territórios por onde circula. Pertence, com mais propriedade diria que pertenceria, como quer certa inteligência nacional, a uma das metades da cidade partida. Tem lançados e postos em circulação dois livros: Melaço e Anfíbios. No primeiro, Batalha escreve um belo poema, marcado pelo impacto da chacina de Vigário Geral e pelo que tal chacina provocou, com o surgimento do movimento Afroreggae.“Sagacidade é saber farejar delícias”. Emblemático e diferenciador, o verso, com que abre o poema, serve de mote para a constituição das diversas diferenças que anoto em sua escrita. Ao contrário do que propõe a partitiva inteligência, acerca da divisão da cidade, o que se verifica na poesia de Batalha se constrói a partir do amálgama das diversidades, de modo surpreendente.Se a visão da cidade partida cinde a percepção do olhar sobre as manifestações culturais do espaço urbano; se, no além túnel, a arte recebe a chancela do popular; se a inteligência brasileira tem a necessidade de “gostar” de tal arte, muita coisa se perde e em várias sentidos. Deste logo, o rótulo arte popular, arte do subúrbio, arte das favelas esconde uma dignificação exatamente daquilo que não é popular e empurra o julgamento do popular para uma aceitação acrítica. É inaceitável que tal aceitação acrítica se transforme em moeda de troca, ou, com maior crueldade ainda, em uma estética própria, localista, como se um redivivo regionalismo (re) fundasse a arte como expressão sociológica, como arte de combate – ou coisa que o valha –, distanciada das questões estéticas. São diversos os livros e também as músicas que simplesmente se exaltam por esta expressão localista. Não tem sentido, por exemplo, exaltar toda e qualquer arte naïf por ser arte naïf. Há uma grande arte naïf e há também uma horrorosa arte naïf. Há os belos quadros de Nelson Sargento e há aqueles dos retratistas de rua. Não basta, portanto, pertencer ao conceito popular/naïf para que a manifestação artística se torne aceitável. Batalha tem a vantagem de saber disto. Sua poesia, embora fortemente enraizada, busca outra percepção, outro diálogo. Não se aceita como representante estanque do localismo, nem do ferrolho – imposto pelos que “gostam” da arte popular – de uma poesia frágil, porém bacana. Senão, leia-se em Melaço:Os cambaus, esse mundaréu é meu! Perebento e muquirana é a mãe!Eu não sou do seu naipe!Eu tenho gogó mermão!Anchova é o caralho!Eu sou é enchova de dentes afiados!Sutilezas. Cambaus – peça triangular que se põe no pescoço das cabras para evitar que pulem as cercas. Anchova/enchova – a cerca lingüística ultrapassada pela significação mínima ao nível da expressão. A relativa abertura da medial /ã/ reescrita pela nasalização entre dentes, realiza, com uma concisão de miniaturista, o que o poema anuncia no plano semântico – a quebra das fronteiras. E a ela acrescenta não só a auto-noemação, enchova, como também a rejeição à nomeação que, de fora, tentam lhe impor, anchova. A partir desta dupla significação, o poeta mostra os dentes afiados, se acrescenta em força e qualidade e requer para si a vasta possibilidade da sagacidade: Podre podrePresidiárioPodre podre CrucificadoPodre podreAmortalhadoPodre podreDesumanizadoPodre podreTorturadoPodre podreEntulhadoPodre podreDesovado E mesmo assim, Afroreggae.Atentem para o “e mesmo assim”.

Oswaldo Martins é escritor e poeta, formado em letras, mestre em Literatura Brasileira pela UERJ e, atualmente, frequenta o doutorado em Literatura Comparada, na UFF.
----------------------------------------------------------------------------------

3 - O melaço de quando cana. O melaço enquanto sangue. O mel, enfim, do bagaço. É esse desvio semântico – de cana, mel e bagaço – que deixa Batalha de fora da lira edulcorada que se lê por aí.No porta-mala do poeta há presunto, no porta-luvas do poeta há presença, no seu porta-chave não há saída. Porque a coisa começa em Vigário Geral e acaba em Vaz Lobo, onde o poeta conhece, respectivamente, a banda Afroreggae, surgida da famosa chacina, e a pombagiruda Dezessete, que o trocou por “um policial tipo pulseira-de-prata-malvadão” que adora dar porrada em pederastas, piranha-assumida, ninfomaníacas, travestis, bicha-assumida, prostituta-tipo-praça-Mauá, isto é, odiava Copacabana. Pra quem vem do posto 6, como eu, é tomar a amarela via vermelha, logo depois de onde a favela derreteu, em seguida um valium via oral, e finalmente a Automóvel Clube, como quem procura “a quarta opção do semáforo”, numa região delimitada pelos cemitérios de Ira já e Inhaúma. O poeta bem que avisou: “Cerol, para dinamitar tudo que for viga realista/ Cerol, para erguer novas pontes, pontas, poesias”. Depois que o viaduto derreteu, uma alternativa é a Suburbana, rebatizada D. Hélder Câmara sob protestos da Universal, que tem seu Vaticano bem na beira dessa pista. Pois bem: foi em Vaz Lobo que conheci Rogério Batalha, aluno da UniverCidade (cuidado revisores), num curso sobre a dialética da malandragem em que terminei aluno do aluno. (...)É uma poesia desconfiada de todo o poder, inclusive do da palavra, o que o põe na contramão das tendências formalistas: “mesmo que eu escreva/ a palavra flor/ cadê a haste?/ cadê o cheiro?/ cadê a cor?” (...)O poeta pertence a um time que toma de assalto a literatura bem-pensante dos inocentes do Leblon:Cigarros, cigarrasVídeos, vinhosNoite de autógrafo ou verão?Imagina, a vida que eu queriaLivraria o Leblon.Relíquias, revistasAmigos de amídalasBafo na nuca da solidãoEu é que não façoAs bainhas do coração. A poética pós-túnel, para quem já descobriu o romance de Paulo Lins, oriundo da Cidade de Deus, e a prosa curta de Mauro Pinheiro, ganha com Rogério Batalha mais luz depois do túnel.

Ricardo Oiticica – 2001.4 -
----------------------------------------------------------------------------

4- Duas águas e uma pororoca

O poeta contemporâneo tem que ser perigoso como Dante foi perigoso: uma força respeitável frente às demais forças sociais. Do contrário, no entontecedor movimento rumo-Norte a que assistimos em nossos dias, a poesia seria qualquer coisa de marginal, menina chorona ou risonha, abandonada à beira de uma auto-estrada de tráfego intenso. O poema precisa funcionar como qualquer outra coisa. E para que possa fazê-lo, para que a poesia possa voltar a ser – como sem dúvida já o foi e potencialmente ainda o é – o mais eficaz, o mais perene e o mais exato dos meios de comunicação, é necessário, em suma, que o poema viva em função do tempo, do espaço e do homem – contra ou a favor, nunca indiferente. (Mário Faustino)Rogério Batalha é um poeta perigoso. Mas não o tema o leitor; pelo contrário, comemoremos. Depois de Malícia, Bazar Barato e Melaço, Anfíbio põe mais força no moto-contínuo desta antiga e inesgotável motriz de sonhos e vidas, a poesia. Não o tema, mas cuidado, leitor! Há muito mais do que vidas duplas ou duplos sentidos neste livro.Não queira encontrar, em Anfíbio, os sapos. Aqui estamos mais para os caranguejos cabralinos. Só que, criados no mangue carioca, driblam a severinidade da morte-vida e a aspereza da forma rígida: continuam farejando delícias como quem burla a própria ambigüidade vital (manipula a toalha xadrez do destino), ora num pé-sujo de Madureira, ora numa aula de literatura.A divisão interna que o leitor encontrará em Anfíbio também seria similar à do poeta pernambucano. São duas águas: a primeira se quer visualmente lida, as posições do verso, as fontes tipográficas reclamam um significado plástico ao poema; experimente ler, por exemplo, os versos deslocados de “A flor inusitada”: finalidade paira descrente. Esta também é a água da reflexão metapoética e da intertextualidade literária, rasuras que Batalha imprime em si mesmo e em outros poetas perigosos: estão lá a “Machadiana”, a “Oswaldiana”, ou a “Antena premonitória”, que também podia se chamar poundiana (borogodó / ao máximo grau possível).A segunda água, fluviante, flutual, requer um complemento auditivo: harmonias e melodias, tão maliciosas quanto os poemas, que os parceiros (Paulinho Lêmos, Moacyr Luz, Kinho, Dú Basconça) t(r)ocaram com Batalha. Por esta audição temo que o leitor ainda espere um pouco: por enquanto só há CD demo (o medo anagrama do demo ?), guardando pérolas como “Malícia” ou “Aliás”. Paciência! Sabemos que, a cada década, as coisas ficam menos fáceis nessa auto-estrada de tráfego intenso rumo-Norte.E é justamente por isso por não ser nada fácil colocar em circulação música e poesia (das boas), por ser quase impossível tirar a poesia das margens dessa estrada, da rapinagem do marketing, ou das pequenas castas inertes (Imagina, a vida que eu queria / Livraria o Leblon) é exatamente por isso que Rogério Batalha é um poeta perigoso: em função do nosso tempo, do nosso espaço, da nossa vida, escreve seus poemas, fabrica seus livros, inventa a Bizu, se mete em recitais pelas águas e lamas da cidade (Se a minha cidade já não é / Um Rio de águas cristalinas / Quem há de negar / Que ela ainda é a matriz da poesia). Enfim, vai se safando (anfíbio / e rasteiro / demiurgo / de si mesmo / da vida / os nervos) e engrossando o coro daqueles que insistem para nós, leitores e brasileiros, que há uma saída poética: um discurso que é bárbaro e nosso, macunaímico e malandro; o discurso do entre-lugar; de quem sabe que é melhor fazer uma canção [do subversivo ato de / cantar / (dar as costas para o / real luar) / morar / no entrelugar].Finalmente, é neste entre-lugar que o novo livro de Rogério nos coloca: não só no equívoco limite entre o que é poesia e o que é letra de música, mas também nas fronteiras de um espaço híbrido entre o risco de ler Quixote (Se De La Mancha bordou com sua lança / Devaneios imortais) e o risco de ouvir no rádio do motel algum hit biodegradável (tipo Rosana – “Como uma deusa”); ou entre a sintaxe do estranhamento (jamais descobrirá / esta grita: / turba enfurecida) e o lugar-comum de novela da Globo (muita calma nesta hora).Ao anunciar seu (entre)lugar, Anfíbio deixa para trás a dicotomia das duas águas que nos orientava a leitura. Apesar de suas duas partes, não se deixe iludir, leitor, o livro inteiro é ruidosa pororoca: foz das letras / de minha parca alma (duas enseadas) / onde a pororoca de minha vida / dispara. Para com vida que dispara, com suas elevações repentinas e seus banzeiros, Rogério nos impede de ser indiferentes.

Alexandre Faria é escritor, poeta e Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

------------------------------------------------------------------------------------------

5 - Marcelo de Araújo Sant'annaAluno do 7º período de Letras – Campus Rebouças tor

Melaço. A semântica da palavra remete a algo envolvente, viscoso, consistente. E é assim que se apresenta o livro de Rogério Batalha. Sua poesia é impactante, moderna, lúbrica, cheia de adjetivos, que por isso mesmo, a isola. De doce, o mel passa a amargo. É o gosto de sangue que escorre de suas palavras, fora de padrões convencionais, distante de querer agradar e, no entanto, profunda em sua investigação e sua denúncia. Aos parnasianos de outrora, Batalha mostra que a poesia, mais do que formulações métricas e rimadas, está no conteúdo. O eu-lírico do autor vem a serviço do belo das ruas, da crueza das relações carnais, da noite vadia. Não se fala de amor. Fala-se de tesão, de carne, de desejo. E também de morte. A chacina de Vigário Geral marcou para sempre uma comunidade e sua poesia é o alto-falante dos que se calam, por medo ou por não saberem como falar, para quem falar.Envolvido com o movimento do Afroreggae, voz que se ergue da tragédia, o poeta utiliza-se do jogo de palavras para dar voz aos desvalidos, aos marginais (porque estão à margem), aos excluídos. O Afroreggae surge dos escombros de uma calamidade, de uma vergonha nacional, de um massacre pelo poder instituído, do crime legitimado pela farda. Como a Fênix, o grupo surge das cinzas e a poesia em Melaço é como o vôo da ave, antes e depois das cinzas. Podre, podre. Podres poderes, podre sociedade. Podre violência. Podre covardia. Sua palavra é o contra-tiro. É revólver contra canhão. A morte em Vigário Geral é também cultural. A sociedade esmaga os desvalidos. Eles não têm escolha, são levados. A metralhadora giratória de Batalha aponta contra as desigualdades. Surge a voz do pós-túnel.O poeta Cazuza já dizia que "a burguesia fede, a burguesia quer ficar rica". Batalha também o diz, mas de um outro prisma, do lado de lá. Bastardia e nobreza são envolvidas num mesmo jogo. A nobreza é contaminada pela bastardia, e vice-versa. O real é constituído a partir de uma imagem. É na troca de olhares entres esses dois mundos, tão diversos, que a poesia de Batalha encontra espaço. Seu olhar é o olhar do subúrbio, mas há uma simbiose derivada de sua consciência no mundo. Não há ingenuidade. O preconceito existe, as injustiças existem. Não há lugar para o disfarce: e ele solta o verbo. É o negro que se quer nobre. Há uma simbiose entre o povo e a aristocracia. É o negro de sangue azul. O livro pode ser dividido em duas partes, que se complementam por falarem do mesmo mundo. Na primeira parte, os poemas são mais voltados para a desigualdade, para a violência, para as contradições. Na segunda, o olhar continua pós-túnel ou pré-túnel, dependendo do ângulo que se olhe, mas a sexualidade é mais aflorada. Há uma negação e desconstrução do discurso amoroso. As relações são viciadas e viciosas. A malandragem é retratada, a inocência está perdida. O jogo do amor é um jogo de sedução. Há um encontro de corpos, não de almas.Sua poesia é um grito de horror e recusa. Recusa às injustiças, recusa a não ter direito:Minto, roubo, finjo- criança querendo -Ver, ter, saberA criança carente é para a sociedade uma ameaça, são futuros marginais. Fecham-se os olhos, fecham-se as oportunidades, impossibilita-se o futuro. A poesia de Batalha traz à tona essa voz da criança que não é ouvida. Voz fraca sem repercussão. Por isso força-se a passagem. Se o grito de dor não ecoa aos privilegiados ouvidos, a violência ecoará forte a todos os ouvidos. Não há mais divisão. Estão todos envolvidos num chafurdar de lama e gritos. Não importa para Batalha em quem vai doer a palavra-tiro. Suas preocupações são outras: "nenhum exame balístico registrará a causa morte da tristeza da menina". A sua poesia é uma afiada navalha nas convenções da sociedade, em suas hipocrisias e em seu jogo de disfarces. Mete-se o dedo nas feridas e elas são muitas. Vêm à tona as mazelas da sociedade. Sua palavra é dura, mas ainda assim poesia. É como o grupo: "Mas mesmo assim, Afroreggae".A família como instituição também é desconstruída aos olhos do leitor. Um almoço familiar, que se pressupõe uma reunião de alegria, é pincelado com tinta negra. No poema "As galinhas mortas" a linguagem é utilizada como ironia: "um garfo tossia, um velho caía". Em um poema dedicado à família, vemos um desfile de personagens que fazem parte da sociedade, mas que se escondem atrás da visão de uma família sólida e feliz: é o tio que queria ter nascido mulher, a irmã mais pobre que cobra de seus parentes o soldo de sua pobreza, a sobrinha meio putinha. E por aí vai. Não são personagens fictícios: eles moram em nossas casas, fazem parte de nossas famílias. Nesse instante, a poesia pós-túnel é também a voz do pré-túnel. São todas as vozes num único discurso repetitivo, tradicional, familiar.No poema "Luísa Liberato", o autor debocha das máscaras com que cada um estabelece seu espaço na sociedade. A marcação teatral é ridicularizada. Luíza que se apresenta como modelo-manequim-artista-de-tv: não pertence ao pós-túnel. Ela está centrada numa outra posição, ao que o poeta responde, dando ênfase ao seu lado marginal. Seu jogo de palavras remete à sexualidade latente. Centauro-fêmea e suzie-amulatada constróem uma imagem de explosão de sensualidade. A demarcação do espaço social revela sua reflexão filosófica, é a vida e sua universalidade que está sendo pensada.Observando o poema malícia:Me tenha como vícioAceite os meus de bom grado Que o seu coração palpite, mire,dispare sobressaltos.Não quero nem saber Da meia-água dos teus fadosQuero o teu choro, depois o risoMalícia de asfaltoE enquanto issoVou te mostrando(desde o início)Meu jeito hábil.Há no poema um jogo estabelecido de desejo. Não há lugar para o amor. O que há é uma relação viciada. Como todo vício, é difícil abster-se. O prazer que dele provém aprisiona e não dá lugar a sentimentos submersos. Somente na hora do ato sexual em si é que o coração deve disparar, sobressaltar-se. No verso "Não quero nem saber da meia-água dos teus fados", há um encontro muito bem ajambrado entre o coloquial e a erudição, que revela que não há cumplicidade além da cama. A malícia está presente em todo o poema, quer seja a malícia do malandro, da mulher vivida ou mesmo da prostituta, quer seja a malícia do jogo viciado. O jogo é estabelecido desde o início para que a crise não se estabeleça com um dos jogadores querendo aprofundar a relação.O universo de Melaço é intrigantemente belo e caústico. O mundo pós-túnel é o cenário principal. Suas personagens marginalizadas são as protagonistas que revelam, por trás da violência, dos vícios, dos crimes, da pobreza, um mundo adornado de sentimentos à flor da pele. É a pulsão dos que estão por baixo, sufocados, e que não agüentam mais todo o peso que lhes foi e é legado diariamente. A palavra de Rogério Batalha é a implosão da ordem estabelecida. Ao trazer o universo de sombras à luz da ribalta, jogar luz nos escaninhos da sociedade, o poeta nos ensina que "Sagacidade é saber farejar delícias!"

--------------------------

Nenhum comentário: